Um Cidadão chamado Solidariedade

Fonte: Revista Jornal dos Jornais, de outubro de 2000.

A luta contra a fome, da qual Betinho se tornou um poderoso aríete, naturalmente reclama constantes investidas.

Em 9 de agosto de 1997, Betinho, mineiro de Bocaiúva, voltou à Pátria Espiritual. Creio que uma das principais contribuições do saudoso sociólogo tenha sido mobilizar Solidariedade Brasil afora, por isso em 1981 criou o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas).

Bem merecido e exato foi o prêmio que recebeu no fim de 1996, no Plenário do Parlamento Mundial da Fraternidade Ecumênica, o ParlaMundi da Legião da Boa Vontade, em Brasília/DF: a Comenda da Ordem do Mérito da Fraternidade Ecumênica, na categoria “Solidariedade”.

Sem ela, a sociedade sucumbe ao egoísmo. O mais trágico erro é o milenar desrespeito à sagrada pessoa humana, o Capital de Deus.

Já em março de 1985, no Diário Popular, de São Paulo/SP, comentava o jornalista Anderson França: “A crise econômica que afeta o mundo é uma verdadeira praga e, nesse sentido, a brecha entre os países ricos e os pobres aumentará até o ano 2000, vitimando mais de 600 milhões de pessoas, que viverão abaixo do nível da pobreza. Essa tétrica advertência é do Fundo das Nações Unidas para Atividades Populacionais, que acaba de analisar as atuais tendências de crescimento econômico no mundo. Na realidade, a indigência nos países em via de desenvolvimento é e será fruto das disparidades internacionais, em cujo leque se encaixam o alto custo dos empréstimos e a crise do pagamento das dívidas. Em outras palavras, os países ricos continuarão a ter uma receita per capita no mínimo 200 vezes maior do que a dos países pobres. Para exemplificar bem o grau dessa barbaridade, é bom dizer que a quantidade de trigo destinada pelos EUA ao fabrico de ração animal daria, tranquilamente, para, de uma só tacada, estancar a fome no continente africano...”

"O Bicho"

Cabe aqui, por oportuno, um veemente protesto do grande poeta Manuel Bandeira (1886-1968) contra a falta de Humanidade da humanidade que permanece ameaçando povos incontáveis:

“Vi ontem um bicho

“na imundície do pátio

“catando comida entre os detritos.

“Quando achava alguma coisa,

“não examinava nem cheirava:

“Engolia com voracidade.

“O bicho não era um cão,

“não era um gato,

“não era um rato.

“O bicho, meu Deus,

“era um homem”.

Por isso, a luta contra a fome, da qual o ilustre professor Herbert de Souza (1935-1997) se tornou um poderoso aríete, naturalmente reclama constantes investidas.

Sem o sentido da Fraternidade que se projeta na ação solidária, da qual Jesus é um luminoso exemplo, que problemas serão efetivamente aplacados, mesmo por força do progresso tecnológico em vigor?

Conforme escrevi no meu artigo "Independência", publicado pela Folha de S.Paulo, em 7 de setembro de 1986, numa época em que, pelo avanço da tecnologia, as expectativas de produção ficam ultrapassadas, a fome é realmente um escândalo! Por quê?! Falta de Amor nas Almas, que resulta na exaltação do nefando ismo do ego.

O irmão do Henfil (1944-1988) (guardo comigo bem-humorada e ilustrada dedicatória que o sempre lembrado cartunista — por sinal, também mineiro, de Ribeirão das Neves — me enviou no seu O Diário de um Cucaracha) soube ver, através das lentes da verdade social, o que Benjamin Franklin (1706-1790) registrou nas suas meditações: “Onde há fome, não há respeito à lei (...)”.

Isto é, um dia, tudo pode acontecer. O povo é uma permanente surpresa.

Fala Betinho

A Providência Divina suscita homens de estirpe no seio de todas as nações e em todos os tempos, para que as consciências não adormeçam e que do hábito de refletir surjam ações humanitárias de extensos resultados. Eis por que encerro esta singela homenagem, recordando expressiva advertência do imortal Cidadão Solidariedade: “A fome é exclusão. Da terra, da renda, do emprego, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado. É uma espécie de cerceamento moderno ou de exílio. A morte em vida. E exílio da Terra. (...) fizemos verdadeiros milagres de desenvolvimento. Um dos maiores PIBs do mundo abraçado com a pobreza é a miséria mais espantosa. (...) dois mundos no mesmo país, na mesma cidade, muito próximos pela geografia e infinitamente distantes como experiência de humanidade”.

Ninguém diria melhor. Parabéns, Betinho, onde quer que esteja! E sabemos que é em um bom lugar. E continua vivo, porque os mortos não morrem.

José de Paiva Netto, escritor, jornalista, radialista, compositor e poeta. É presidente da Legião da Boa Vontade (LBV). Membro efetivo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Associação Brasileira de Imprensa Internacional (ABI-Inter), é filiado à Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), à International Federation of Journalists (IFJ), ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro, ao Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, ao Sindicato dos Radialistas do Rio de Janeiro e à União Brasileira de Compositores (UBC). Integra também a Academia de Letras do Brasil Central. É autor de referência internacional na defesa dos direitos humanos e na conceituação da causa da Cidadania e da Espiritualidade Ecumênicas, que, segundo ele, constituem “o berço dos mais generosos valores que nascem da Alma, a morada das emoções e do raciocínio iluminado pela intuição, a ambiência que abrange tudo o que transcende ao campo comum da matéria e provém da sensibilidade humana sublimada, a exemplo da Verdade, da Justiça, da Misericórdia, da Ética, da Honestidade, da Generosidade, do Amor Fraterno. Em suma, a constante matemática que harmoniza a equação da existência espiritual, moral, mental e humana. Ora, sem esse saber de que existimos em dois planos, portanto não unicamente no físico, fica difícil alcançarmos a Sociedade realmente Solidária Altruística Ecumênica, porque continuaremos a ignorar que o conhecimento da Espiritualidade Superior eleva o caráter das criaturas e, por conseguinte, o direciona à construção da Cidadania Planetária”.