Brecht, Heróis e Heróis (Final)

Fonte: Jornal Folha de S.Paulo, edição de 26 de agosto de 1990, domingo.
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Bertolt Brecht

O tema desta nossa palestra é a interpretação parcial que alguns fazem da frase proferida, certa feita, pelo inconfundível homem de teatro Bertolt Brecht (1898-1956): “Infeliz do povo e do tempo que necessitam de heróis”.

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Mohandas K. Gandhi

Na verdade, meu caro Brecht, infelizes das nações e dos tempos que não têm, nem mesmo, os seus heróis... Gandhi costumava afirmar ser uma temeridade tirar-se o que quer que seja do povo sem lhe oferecer algo em substituição.
E nós concluímos que esse algo deva ser — de preferência — melhor, bem melhor! Fala-se mal do povo, mas o que se lhe tem oferecido? Seus mentores muita vez lhe são piores... Basta ver a que ponto o deixaram chegar, em engano, desamparo e desilusão... As massas sem lideranças vivem ansiosas e inseguras.

Todas, declaradamente ou não, esperam os heróis da dignidade, da decência, da competência honesta — de que está repleto o próprio povo, mesmo sem que o saiba. Se o povo não tiver heróis razoáveis, se até isso lhe for tirado, fatalmente irá à cata de deuses descartáveis. E nisto consiste a terrível cilada, pois, no mundo, se deuses existem, seus pés são de barro... tal como no sonho de Nabucodonosor. E de deuses se esperam milagres, que nunca vêm; mas, dos heróis aguardam-se bons exemplos de que todos necessitam para seguir avante. Certamente o velho Bertolt, na sua lamentação, referia-se àqueles, tais como Hitler, pois sabia muito bem que qualquer povo carece de quem sustente uma forte luz a clarear o caminho cheio de percalços, sob pena de quebrar o esqueleto moral e, consequentemente, social.

O autor de “A exceção e a regra” naturalmente possuía conhecimento disso. Basta ver que, na queda de antigos conceitos, pretendia levantar outros, cuja luminosidade considerava superior ao que existia no campo, por exemplo, do teatro, sua principal área de ação, às vezes desesperada: “O homem não pode agir sem ser injusto, mas não pode renunciar à ação sem ser inútil”. Ocorre que ele também afirmou: “Há homens que lutam um dia e são bons. Há outros que lutam um ano, e são melhores. Há os que lutam muitos anos, e são muito bons. Mas somente aqueles que lutam toda a sua vida, esses são imprescindíveis”. Eis então surgir o herói na definição do próprio escritor germânico.

Arquivo BV

Alziro Zarur (1914-1979), saudoso fundador da LBV.

Ah! Se Brecht conhecesse o Evangelho-Apocalipse de Jesus! Evidentemente que sem teias de aranha dogmáticas, como preconizava Zarur, pois em Espírito e Verdade, à luz do Novo Mandamento do Cristo, que é a Lei da Solidariedade sem fronteiras: “Amai-vos como Eu vos amei (Evangelho do Cristo, segundo João, 13:34). Haveria compreendido que toda ativa rebeldia, nascida como reação ao cinismo que se encontra espalhado pelo mundo, deve avançar além da iconoclastia, para ser capaz de erguer, da desordem, as bases de uma humanidade efetivamente melhor. Não basta destruir o que está errado; acima de tudo, necessário e mais difícil, é construir. Só o Amor realiza essa obra em profundidade. Sua ação é paciente, conquanto enérgica, mas definitiva. A luz, então acesa, passaria a clarear a estrada dos seres humanos, livrando os povos de tropeçar na escuridão alimentada pelos confusionistas de todos os matizes.

Não estará isso acontecendo ao Brasil? ... que, por sinal, acabou arranjando um “herói” sem caráter, que tem, a torto e a direito, “felizes” e vorazes imitadores; Macunaíma, que, como louco, vai destruindo, sem antes nem mesmo construir. Vê-se, pois, que, na praça, Barrabás ainda hoje continua sendo o escolhido. Quousque tandem, Catilina?” (“Até quando, Catilina”).

Realmente, ai do povo e do tempo que necessitam de ... falsos heróis!...

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Frase de Cícero — Marcus Tullius Cícero: Orador e político romano (106-43 a.C.). Ficou famoso o seu eloquente repúdio a Catilina (Lúcio Sérgio Catilina), quando este teve a audácia de comparecer ao Senado Romano, depois de descoberta a sua conspiração contra a República: “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?” (“Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?”).

Nota dos editores: Matéria publicada no jornal Diário Popular, de São Paulo/SP, em 30 de abril de 1998.

José de Paiva Netto (1941-2025), escritor, jornalista, radialista, educador, compositor e poeta, Presidente de Honra e Consolidador da Legião da Boa Vontade (LBV). Membro efetivo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Associação Brasileira de Imprensa Internacional (ABI-Inter), foi filiado à Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), à International Federation of Journalists (IFJ), ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro, ao Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, ao Sindicato dos Radialistas do Rio de Janeiro e à União Brasileira de Compositores (UBC). Integrou também a Academia de Letras do Brasil Central. Foi autor de referência internacional na defesa dos direitos humanos e na conceituação da causa da Cidadania e da Espiritualidade Ecumênicas, que, segundo ele, constituem “o berço dos mais generosos valores que nascem da Alma, a morada das emoções e do raciocínio iluminado pela intuição, a ambiência que abrange tudo o que transcende ao campo comum da matéria e provém da sensibilidade humana sublimada, a exemplo da Verdade, da Justiça, da Misericórdia, da Ética, da Honestidade, da Generosidade, do Amor Fraterno. Em suma, a constante matemática que harmoniza a equação da existência espiritual, moral, mental e humana. Ora, sem esse saber de que existimos em dois planos, portanto não unicamente no físico, fica difícil alcançarmos a Sociedade realmente Solidária Altruística Ecumênica, porque continuaremos a ignorar que o conhecimento da Espiritualidade Superior eleva o caráter das criaturas e, por conseguinte, o direciona à construção da Cidadania Planetária”.